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Gêmeos digitais humanos e a privacidade de dados

Novas tecnologias e suas relações com a privacidade de dados sensíveis: desafios, riscos e caminhos para uma regulação ética

Gêmeos digitais humanos e a privacidade de dados
Ramon de Souza

Ramon de Souza

(ISC)² Certified in Cybersecurity | Journalist | Author | Speaker

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O conceito de gêmeos digitais mudou a forma como indústrias pensam sistemas complexos: a ideia é simples e poderosa ao mesmo tempo — criar uma réplica digital que espelha, em tempo real, o comportamento de um ativo físico para simulação, diagnóstico e otimização.

A história começa em áreas como manufatura e aeroespacial, onde a possibilidade de testar cenários sem risco físico representou uma vantagem competitiva imensa; a arte de replicar turbinas, linhas de produção ou satélites em formato virtual possibilitou reduzir falhas, otimizar manutenção e acelerar o design.

Parte dessa trajetória remonta às práticas de simulação usadas na era espacial e à formalização do conceito nas primeiras descrições acadêmicas e industriais do início dos anos 2000.

E se... Fizéssemos com humanos?

Com a maturidade tecnológica — sensores ubiquamente conectados, armazenamento massivo, modelos computacionais mais sofisticados — surgiu a tentadora pergunta: e se esse paradigma fosse aplicado ao ser humano? A resposta deu origem aos gêmeos digitais humanos, conhecidos em inglês como human digital twins: modelos computacionais que agregam múltiplas camadas de dados biomédicos, comportamentais e ambientais para representar, prever e simular a saúde de um indivíduo ou de uma população.

Na prática, esses gêmeos podem combinar prontuários eletrônicos, leituras de wearables, imagens médicas, sequenciamento genômico e até dados do ambiente domiciliar para construir uma representação que sirva a propósitos clínicos — desde planejar cirurgias até prever a resposta a medicamentos ou traçar trajetórias de doenças crônicas.

A literatura recente e iniciativas acadêmicas e industriais mostram um crescimento rápido dessas aplicações na saúde. Os benefícios potenciais são notórios e, em alguns casos, já demonstram resultados reais.

Um gêmeo digital humano bem construído permite medicina verdadeiramente personalizada: testar, em ambiente virtual, diferentes terapias antes de submetê-las ao paciente; avaliar o risco de complicações em procedimentos invasivos; monitorar evolução em tempo quase real e habilitar intervenções preditivas que evitem internações.

Instituições de pesquisa e hospitais têm usado réplicas digitais do coração, do cérebro e de outros órgãos para planejar procedimentos complexos, reduzir falhas e encurtar o tempo de experimentação. Além do ganho clínico, há impacto potencial em redução de custos, otimização de recursos hospitalares e aceleração de pesquisa translacional.

Os conflitos com a proteção de dados

Mas, como toda tecnologia que converge sobre informações de humanos, os gêmeos digitais humanos trazem consigo uma pesada carga de preocupações: privacidade online, privacidade de dados e, especialmente, a gestão de dados sensíveis.

Esses modelos não processam apenas informações demográficas ou indicadores simples; agregam imagens diagnósticas, sinais fisiológicos contínuos, perfis genéticos e inferências comportamentais.

A combinação forma um retrato extraordinariamente detalhado e identificado de uma pessoa — um ativo precioso para a medicina e, simultaneamente, um vetor de risco severo em caso de mau uso, vazamento de dados ou ataque cibernético.

O primeiro risco é o da centralização e da riqueza de informação: quando múltiplas fontes convergem num repositório que alimenta o gêmeo, a superfície de ataque cresce e as consequências de um incidente passam a ser muito mais graves do que uma quebra isolada de um prontuário.

Além disso, técnicas de inferência e ataques a modelos, como membership inference e model inversion, demonstraram que modelos de machine learning podem vazar informações sobre os indivíduos que os alimentaram — mesmo sem expor explicitamente os dados brutos.

Isso significa que até exposições aparentemente benignas, como uma API que retorna predições, podem ser exploradas para recuperar traços sensíveis. Pesquisas acadêmicas documentam esses tipos de ataques e mostram que risco e utilidade existem numa tensão não trivial.

Outros perigos envolvidos

Paralelamente, existem riscos de reidentificação: dados anonimizados de séries temporais de sensores ou de genomas podem, com cruzamento e técnicas modernas, ser vinculados novamente a indivíduos.

Em contextos onde gêmeos digitais humanos são usados para pesquisa populacional ou desenvolvimento de produtos, a promessa de anonimização de dados perde força quando dados são combinados em escala. Se esses dados vazarem, o dano costuma ser irreversível, pois sequências genéticas e traços biométricos não mudam como uma senha.

O que é HIPAA?

Para contextualizar legalmente as preocupações, é necessário trazer uma referência normativa conhecida no setor de saúde: a Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA). Essa legislação, aplicada nos Estados Unidos, estabelece padrões nacionais para proteger a privacidade e a segurança de informações de saúde identificáveis — as chamadas Protected Health Information (PHI).

Em suma, a HIPAA regula quem pode acessar, processar e divulgar dados de saúde, exige salvaguardas administrativas, físicas e técnicas, e confere direitos aos indivíduos sobre suas informações. A regra de privacidade estabelece padrões nacionais para proteger registros médicos e outras informações de saúde individualmente identificáveis.

A HIPAA não é um escudo universal: aplica-se a entidades e associados corporativos definidos por regulamento, e as exigências dependem desses papéis. Quando se projeta um gêmeo digital humano que integra dados vindos de diferentes provedores ou de empresas de tecnologia, é essencial mapear responsabilidades contratuais, obrigações de segurança e fluxos de uso de dados para manter a conformidade.

Modelos de governança para privacidade

Diante desse panorama, a discussão sobre proteção de dados sensíveis precisa ir além da conformidade reativa. Existem linhas tecnológicas e de governança que surgem como mitigadores promissores: federated learning, differential privacy e criptografia aplicável a modelos, como aprendizado sobre dados criptografados. Federated learning permite treinar modelos colaborativos sem transferir os dados para um único repositório.

Differential privacy adiciona ruído controlado às saídas para limitar o quanto uma única entrada pode ser inferida. Técnicas de criptografia homomórfica e enclaves confiáveis fornecem camadas adicionais de proteção, ainda que com o ônus de custo e de performance. Revisões e estudos mostram que essas tecnologias podem ser integradas ao ecossistema dos gêmeos digitais para mitigar parte dos riscos.

Questões regulatórias e legislações

No entanto, medidas técnicas por si só não bastam. Existe uma dimensão ética, social e regulatória que precisa ser endereçada: consentimento informado e dinâmico, onde o titular de dados pode gerir níveis de acesso ao próprio gêmeo; governança transparente, que explicite quem pode ver, por quanto tempo e para quais finalidades; auditoria constante e mecanismos de responsabilização clara em caso de uso indevido.

Além disso, políticas públicas devem decidir limites — por exemplo, até que ponto empregadores, seguradoras ou outras entidades comerciais podem acessar predições geradas por um gêmeo digital humano para decisões que afetem emprego, preço de seguro ou crédito.

A urgência regulatória é real. Enquanto o uso de gêmeos digitais humanos escala, leis existentes, como o GDPR na União Europeia e a HIPAA nos Estados Unidos, oferecem fragmentos de proteção, mas lacunas permanecem — sobretudo quando modelos, inferências e dados comportamentais cruzam jurisdições e setores.

A criação de frameworks éticos e normativos específicos para gêmeos digitais humanos deverá contemplar princípios de minimização, transparência das inferências, direito à exclusão ou portabilidade do gêmeo, controles de acesso baseados em finalidade e mecanismos de supervisão independentes.

Casos de uso concretos

Na cardiologia, gêmeos digitais do coração são usados para simular múltiplos cenários de ablação em arritmias e testar a interação de dispositivos cardíacos antes do implante, reduzindo risco intraoperatório. Projetos em centros de referência já reportaram sucessos clínicos no planejamento de procedimentos complexos.

Na oncologia, modelos que simulam a evolução tumoral permitem testar regimes de terapia adaptativa, ajustar doses e prever resistência a medicamentos, oferecendo suporte para escolhas terapêuticas em estudos experimentais.

Esses ensaios clínicos têm sido desenvolvidos para simular respostas a fármacos em cohorts virtuais, reduzindo a necessidade inicial de grandes coortes físicas e acelerando fases de pesquisa, embora persista o debate sobre validade externa e vieses dos modelos.

No monitoramento remoto e na gestão de doenças crônicas, gêmeos alimentados por wearables podem prever episódios agudos, acionando intervenções remotas e evitando internações, ao mesmo tempo em que ampliam superfícies de coleta de dados sensíveis e exposição via dispositivos IoT.

E mais preocupações

Além de vazamentos por ataques tradicionais, gêmeos digitais humanos enfrentam ameaças menos óbvias: ataques a modelos que podem extrair traços dos pacientes a partir de modelos públicos ou APIs; reidentificação por correlação de múltiplas fontes; e abuso de predições por terceiros para decisões contrárias ao interesse dos indivíduos.

A literatura de segurança demonstra que modelos de machine learning expostos sem mitigação podem revelar se um indivíduo esteve na base de treino ou até reconstruir imagens sensíveis, um risco inaceitável quando se lida com dados biométricos e genéticos.

Para instituições que avançam na implantação de gêmeos digitais humanos, um framework em princípios sintetizados oferece orientação: minimização dos dados coletados, definição clara de propósitos e usos permitidos, transparência sobre o funcionamento e limitações do gêmeo, consentimento dinâmico e granular por parte do titular, auditoria independente das práticas, mitigação técnica com ferramentas adequadas e governança de risco estruturada com matrizes de impacto e planos de resposta.

Esses princípios devem ser incorporados a contratos, revisões éticas e avaliações de risco de privacidade como pré-requisito para qualquer implantação clínica em larga escala.

Uma tecnologia promissora que exige cuidados

Em suma, os gêmeos digitais humanos prometem revolucionar a medicina e a gestão da saúde, oferecendo diagnósticos mais precisos, terapias personalizadas e ensaios clínicos mais eficientes. Essa promessa repousa, contudo, sobre camadas massivas de dados sensíveis e exige uma reavaliação profunda das práticas de privacidade de dados.

A tecnologia para mitigar riscos existe em vários níveis, mas não substitui governança, transparência e regulamentação eficaz. A combinação entre rigor técnico, regras claras e participação social é condição necessária para que se colham benefícios sem destruir a confiança.

A aceitação social também determinará o alcance dos benefícios. Casos de vazamento em ecossistemas de saúde têm efeito duradouro sobre a confiança, e se pacientes optarem por sair de programas por medo de privacidade, perde-se o volume e a diversidade de dados necessária para que os gêmeos funcionem de forma justa. Investir em comunicação clara, escrutínio ético e participação pública revela-se tão crítico quanto a proteção técnica.

Se a sociedade optar por acelerar o uso dos gêmeos digitais sem salvaguardas, abre-se espaço para danos graves e irreversíveis; se optar por construir frameworks éticos, regulatórios e técnicos desde já, os gêmeos digitais humanos poderão transformar a prestação de cuidado sem abrir mão da dignidade e da segurança das pessoas.

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