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Privacidade e LGPD

Vazamento de dados: o pilar da confidencialidade morreu?

Exposições frequentes de informações pessoais, burocracias judiciárias e mudanças nas estratégias corporativas deixam os cidadãos ainda mais vulneráveis.

Vazamento de dados: o pilar da confidencialidade morreu?
Ramon de Souza

Ramon de Souza

(ISC)² Certified in Cybersecurity | Journalist | Author | Speaker

 min de leitura

 

Acreditar que a confidencialidade dos nossos dados continua inabalável é, convenhamos, uma doce ilusão. Vivemos em um cenário em que o aumento exponencial de vazamentos de dados tornou-se quase um ritual cotidiano: não há cidadão brasileiro que, em algum momento, não tenha visto seus dados pessoais — do CPF ao telefone — espalhados por aí, como confetes coloridos em festa de criança.

A promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a criação da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), recebidas como salvaguardas de nossa privacidade, acabaram soando mais como medidores de intenção do que como barreiras efetivas.

Multas simbólicas e procedimentos lentos transformam o que poderiam ser eventuais punições em leves arranhões na reputação das empresas envolvidas, insuficientes para frear o ímpeto dos vazadores ou para devolver a tranquilidade de quem se vê à mercê de abordagens de telemarketing abusivo ou até tentativas de fraude.

Foi lesado(a)? Oras, então prove!

É justamente nesse ponto que a jurisprudência brasileira aporta com um golpe de mestre na vida de quem busca reparação: o entendimento de que o dano moral no caso de um vazamento de dados não é presumido, sendo indispensável comprovar prejuízo concreto para obter indenização.

Ou seja, aquele cidadão que já sofreu múltiplos incidentes de exposição de seus dados cadastrais — e não são poucas as histórias de quem vê seus registros vagando por bancos de dados alheios — fica preso em um novelo jurídico que exige provas quase insólitas: a quantificação exata de um dano que muitas vezes se traduz em apenas terror pessoal, ansiedade ou risco potencial.

Tarefa inglória, concordemos, quando qualquer ação leva meses — ou anos — para avançar pelos tribunais e juntar provas concretas das ameaças possíveis é algo deveras desafiador para um cidadão com pouco ou nenhum conhecimento técnico sobre o assunto.

O inimigo (do caixa) agora é outro

Diante dessa realidade, não causa estranheza que muitas organizações tenham deslocado seu foco para os pilares da integridade e da disponibilidade. Afinal, levando em conta o cenário descrito, é muito mais preocupante, financeiramente falando, um sistema bancário fora do ar ou um e-commerce incapaz de concluir vendas: prejuízo imediato, manchetes instantâneas e acionistas cobrando soluções rápidas.

É compreensível que, nesse contexto, o pilar da confidencialidade acabe relegado a um patamar secundário — um luxo que poucos podem se dar ao trabalho de manter em nível de excelência, especialmente quando a multa por descumprimento da LGPD raramente ultrapassa cifras que uma grande corporação não possa absorver sem muito esforço.

Essa mudança de prioridades, porém, não se limita a um mero rearranjo de planilhas de custo. Ela redefine profundamente a maneira como o mercado enxerga a segurança da informação e a privacidade.

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Ferramentas sofisticadas de prevenção à perda de dados tendem a figurar mais como iniciativas de marketing, embutidas em relatórios anuais para agradar ao conselho, do que como compromissos de fato. A lógica operacional passou a ser: “Se ninguém está processando, por que investir pesado em algo que não gera retorno imediato?”

Enquanto isso, o cidadão comum segue vulnerável, seus dados sensíveis à deriva, expostos sem que haja, na prática, um mecanismo ágil e eficaz para devolver o equilíbrio da balança.

Caminhando para um cenário perigoso

A despeito das promessas iniciais da LGPD e da estrutura da ANPD, o resultado concreto tem sido um enfraquecimento da confidencialidade, na medida em que o custo real de uma violação tornou-se quase risível diante dos benefícios econômicos obtidos com a exploração desses dados.

E, como se não bastasse, a morosidade do Judiciário e a necessidade de comprovação de dano efetivo transformam qualquer tentativa de reparação em um terreno pantanoso, onde poucos se arriscam a entrar — afinal, a conta final quase nunca compensa o esforço.

Diante desse panorama, surge a inevitável reflexão sobre a necessidade de revisitar a legislação. Se a principal queixa é a impunidade disfarçada de processo legal, caberia ao legislador inverter o ônus da prova, transferindo às empresas a obrigação de demonstrar a inexistência de dano ou a devida reparação imediata, a partir do momento em que seja evidenciada a falha na proteção de dados pessoais.

O que importa: o fato ou a possibilidade?

Poderiam ser previstas também penalidades progressivas, que escalonem de maneira severa as sanções em caso de reincidência, para que o impacto econômico seja proporcional ao descaso com a privacidade dos usuários.

E, mesmo sem a comprovação exaustiva de perdas financeiras ou emocionais, o simples reconhecimento de que houve vazamento de dados já poderia gerar indenização automática, ao menos de valor simbólico, para reparar minimamente o sentimento de exposição a que o indivíduo foi submetido.

Sem essas medidas, a impressão que fica é de que a privacidade é apenas mais uma das variáveis a ser balanceada contra margens de lucro e eficiência operacional. A integridade de sistemas e a disponibilidade de serviços continuam a merecer toda a atenção — o que, de certa forma, é compreensível para proteger o funcionamento da economia digital.

Mas, ao desvalorizar a confidencialidade, abre-se espaço para um ciclo vicioso: vazamento após vazamento, com consequências reais para o cidadão e consequências quase inexistentes para quem detém o poder de guardião dos dados.

É hora de mudanças

Claro, é importante frisar que de forma alguma estamos nos esquecendo do problema central aqui: o crime cibernético em si. Muitas exposições são resultados de ataques sofisticados e o uso dos dados vazados também é fruto da ação de golpistas habilidosos. Porém, o objetivo hoje é discutir como iremos, a partir do momento em que este problema existe e é recorrente, agir para minimizar ao máximo seus impactos ao usuário final.

Portanto, é urgente repensar esse equilíbrio. Se queremos uma sociedade digital em que privacidade não seja uma mera buzzword, é imprescindível que a legislação avance na direção de mecanismos que efetivamente responsabilizem e desestimulem o vazamento de dados.

Enquanto isso não acontece, seguiremos navegando num mar de incertezas, assistindo ao desfile constante dos vazamentos de dados como se fossem apenas manchetes passageiras, sem jamais nos darmos o direito de exigir compensação à altura dos riscos a que somos expostos.

E isso, caros leitores, é um luxo que nenhum cidadão deveria aceitar.

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